A tradição da Festa do Congado em Uberlândia
- Vitória Marcelino de Carvalho
- 3 de ago. de 2022
- 10 min de leitura
Atualizado: 5 de ago. de 2022
Os detalhes sobre a popular comemoração dos ternos e a manutenção dessa manifestação cultural através das gerações

Encontro dos Congados no domingo 31 de julho de 2022 | Foto de Vitória Marcelino
A festa do Congado é realizada todos os anos pelos ternos, no mês de outubro, na cidade de Uberlândia, em homenagem aos seus padroeiros Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia. Neste ano, a celebração completa 145 anos, tendo como destaque a participação de crianças e jovens, que ajudam a manter viva a mais antiga festa cultural do município, considerada símbolo de luta e resistência da cultura afro-brasileira.
Raízes históricas do Congado
O Congado nasceu da união das matrizes religiosas africana e católica. Quando os negros foram trazidos para o Brasil escravizados, eles já tinham sua própria fé e ritos religiosos de várias regiões da África. Mas como os Senhores da época não os permitiam cultuar sua própria religião, então eles foram adotando a fé cristã nas suas raízes.
Congado se origina do termo “Congo”, que significa “congar” ou dançar, é uma palavra resgatada da memória dos povos do antigo reino do Congo, na África, que tinham o costume de celebrar através da dança as boas colheitas, visitas de outras províncias, o nascimento de príncipes etc.
Com o tempo, os afrodescendentes, que estavam no Brasil, passaram a se reunir para cantarem e dançarem em louvor a sua santa protetora: Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos negros, para libertá-los da escravidão. Assim, por volta de 1874 e 1876, nasceu o movimento do Congado, quando o município ainda era chamado de São Pedro de Uberabinha.
“A Festa do Congado acontece desde antes da cidade ser emancipada em 1888, ou seja, antes de Uberlândia se tornar uma cidade, politicamente falando, já existia o Congado”, relata Denilson Nascimento, de 49 anos, membro da diretoria da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, que reúne os ternos do município.
O Congado começou com os ex-escravizados da zona rural, que vinham à cidade para se reunir e festejar. Eles se encontravam em bairros como Patrimônio, atual região do bairro Martins e o posto da Matinha até chegarem à Praça do Rosário, que perpetua até hoje, com a Igreja Nossa Senhora do Rosário, no Centro.
Os Ternos de Congado
Atualmente, são 25 ternos de Congado espalhados pelos bairros de Uberlândia e organizados em três grupos diferentes. “Os grupos de Congado não são todos iguais, eles se diferenciam, existem os Ternos que tem seu jeito de bater e seu jeito de cantar, tem o Moçambique que tem outro jeito de bater, uma outra forma de cantar, outra forma de dançar e existe os Catupés que também é outro jeito de bater, uma outra forma de cantar, outra forma de dançar”, explica Denilson.

Letícia e Cecília, integrantes do terno Moçambique de Angola | Fotos de Vitória Marcelino
O grupo de Moçambique costuma ter um ritmo mais musical e utilizam principalmente instrumentos que fazem parte das histórias da época da escravidão, “no Moçambique, geralmente quem toma conta são pessoas mais velhas, porque é responsável por levar as coroas, de levar o reinado, de levantar o mastro, isso tudo é função do moçambiqueiro”, contou integrante do Moçambique Estrela Guia.
Os chamados de primos dos Moçambiques, é o grupo de Catupé. Esse tem um ritmo mais alegre e costumam fazer várias críticas sociais por meio de seus cantos, seus instrumentos específicos dos seus ternos são as meias-luas, os repiliques e as caixas, além de terem proximidade com grupos de povos indígenas.
Já os Congos são o grupo conhecido por seus ternos serem os mais dançantes e coloridos, representam os batalhões do reino, geralmente, usam um chapéu e uma capa bordada como adorno corporal, especialmente nas cores verde, amarelo e marrom.
Os quartéis são as casas referência dos ternos dentro do bairro em que estão localizados, onde seus integrantes se reúnem, realizam seus ensaios, afinam seus instrumentos para tocar, assim como realizam oficinas e se organizam, assim como, existe uma hierarquia em relação a composição dos grupos. Eles costumam ter o Capitão, aquele que comanda, o sub Capitão, o Guarda que zela os instrumentos as crianças nas ruas, os Alferes que em desfiles puxam as filas, os Caxeiros de Frente responsáveis por fazer a evolução na porta da Igreja e os Soldados complementam o grupo. Os quartéis carregam o legado da disputa entre mouros e cristãos e trazem essa hierarquia militar para dentro do Congado.
Enquanto, as Madrinhas, carregam um papel fundamental, pois normalmente são elas quem tomam as rédeas, as mulheres são as principais responsáveis pela manutenção da própria memória do grupo, as contadoras de histórias, elas que pensam na forma como o grupo deve sair e se apresentar, se preocupam com a confecção das roupas, da comida para ser servida e garantir a alimentação de todos no quartel, especialmente, nos dias de festas abertas, necessárias para manter a integração da população com o Congado.

Congadeiro tocando tambor em desfile | Fotos de Vitória Marcelino

Membros do Congado tocando seus instrumentos | Fotos de Vitória Marcelino
A festa do Congado
A festa do Congado foi registrada como Patrimônio Material e Imaterial Municipal, pelo Decreto nº 11.321, na data de 29/08/2008, em Uberlândia. Denilson reforça como “ao mesmo passo que a cidade foi crescendo e se desenvolvendo, a festa também foi crescendo. Até o final da década de 90, nós tínhamos 3 grupos de Congado, hoje estamos entre 25 grupos de congadeiros, a nossa festa é a mais antiga da cidade em atividade.”
Ano após ano, de acordo com o entrevistado, o número de adeptos ao Congado está aumentado e a comemoração tem sido cada vez mais acolhida pelo público. As famílias se preparam por 365 dias do ano para viver seu grande ápice, que são os dois dias principais da festa em outubro, apesar de ela começar bem antes disso, no primeiro domingo de julho.
A comemoração tem seu início com o evento chamado Festa da bandeira, esse ano ocorreu no dia 7 de julho, normalmente é a benção da bandeira que é a guia de cada terno, então cada capitão precisa levar a sua para ser abençoado. A partir desse momento o terno está autorizado começar a fazerem suas visitas às casas dos devotos.
Portanto, a partir desse dia, cada terno pega seu oratório com a imagem de Nossa Senhora e São Benedito e visitam as casas das famílias devotas, sempre rezando o terço, depois os donos da casa percorrem a sua vizinhança e arrecadam algumas “prendas”, que são produtos alimentícios como um óleo, arroz, feijão, uma batata, um pacote de macarrão, bebidas etc. para realizar um leilão. Todo o dinheiro arrecadado é utilizado pelos ternos de Congado para fazerem a sua festa no mês de outubro, para tecidos, instrumentos musicais e recursos para a alimentação interna.
No dia 25 de setembro, se encerra essa primeira fase de visitação e, a partir do dia 30 de setembro, inicia-se a novena na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, onde por nove dias as pessoas de cada terno se reúnem para rezar o terço e depois também fazerem um leilão, mas dessa vez, destinado a cobrir as despesas da estrutura da festa, como a colocação de banheiros químicos, contratação de seguranças, de arquibancadas, tendas e transporte.
Por fim, nos dois próximos dias, 9 e 10 de outubro, acontece o ápice da festa, quando todos se vestem com suas fardas tradicionalistas e se reúnem na praça do Rosário para comemorar e louvar. No primeiro dia, rezam a missa, depois realizam a procissão e a coroação de Nossa Senhora. No segundo dia, eles saem de novo em visita aos devotos e à noite voltam à igreja para fazerem a sua despedida.
“Isso tudo, a nossa fonte inspiradora, nosso alicerce é a nossa fé, tudo isso é feito pela fé. Tenho 14 pessoas que atuam comigo na diretoria da Irmandade, todos devotos e todos trabalham de forma gratuita, ninguém recebe um centavo para trabalhar pela festa e trabalhamos o ano inteiro. Mal acabou uma festa e a gente começa a se preparar para a outra”, relata Denilson sobre os preparativos da celebração.

Festa do Congado de 2019 | Fonte: Portal prefeitura de Uberlândia
A ferida do racismo em Uberlândia
Por muito tempo, mesmo com a abolição da escravidão, não significou o fim de uma espécie de apartheid na cidade de Uberlândia, que até os anos 1960, mantinha uma separação de lugares para brancos e negros em passeios, clubes e cinemas. Vários registros mostram como a população negra era tratada com violência no município.
Em entrevista com Iara Aparecida Ferreira, de 52 anos, integrante do Moçambique Estrela Guia, gestora cultural e de produção de projetos culturais dentro do Congado e assessora do vereador Ronaldo Tannus, ela relatou alguns casos sobre momentos em que os congadeiros foram vítimas de preconceito e racismo.
“Nós temos vários momentos marcantes, porque ainda existe uma discriminação muito grande do Congado por falta de conhecimento das pessoas. Então, tiveram momentos em que fomos fazer uma apresentação, e tínhamos combinado com uma universidade particular para ela pagar um cachê para gente, mas chegou na hora, eles falaram que tinham apenas uma garrafa de pinga para nos pagar, que eles não iam pagar o valor estipulado e isso deixou todo mundo muito chateado.
Dentro do Congado, se trabalha muito com a questão da bebida, do cigarro, justamente para não ter mais discriminação desse tipo, mas ainda existe, então esse momento, para nós foi muito marcante e muito triste.”
Ela também relatou outro caso chocante que aconteceu com o grupo: “Fomos discriminados no shopping, fomos lá fazer uma apresentação marcada e na hora eles mandarem a gente ir embora. Que iam pagar o cachê combinado, mas que era para irmos embora.”
A Festa do Congado completa seus 145 anos, em 2022, essa que é uma cultura de resistência, de marcas de agressões e superações que foram constituindo a memória do grupo e reafirmando a ancestralidade do seu povo junto, demarcando não só o seu espaço territorial, mas um espaço simbólico dentro de Uberlândia.
“Mas também já tivemos momentos milagrosos. Teve um ano que a gente, acho que 2007, nós não tínhamos absolutamente nada para servir na festa no dia do Congado, ninguém queria doar nada para a gente e eu estava chorando muito, lembro de sair pedindo em todos os lugares. Nessa época, no nosso carro, nós tínhamos uma carretilha e quando voltamos para ele, a carretilha estava lotada de frutas e legumes. A gente acredita que foi milagre de São Benedito, porque as pessoas só tinham negado ajuda naquele ano, mas nesse dia, até Kiwi a gente ganhou, fruta que eu nunca tinha comido na minha vida”, contou a entrevistada.

Criança assistindo desfile | Foto de Vitória Marcelino
Manutenção da tradição de geração para geração
Em Uberlândia, é marcante a presença dos jovens e crianças nos ternos, levando desde muito cedo uma vida ativa dentro do Congado, em comparação com outras regiões. Isso é fundamental para a construção da própria manutenção da tradição da festa. É comum que os saberes sejam transmitidos de geração para geração, através da observação, pela oralidade dentro dos eventos e quartéis.
Os ternos estão realizando alguns encontros para começar a movimentar novamente a união entre eles. Por causa da pandemia faz dois anos que a cidade está sem a festa, então algumas pessoas ficaram distantes, muitas famílias que perderam seus parentes desanimaram. Então estão realizando vários encontros para mostrar para as pessoas que os ternos de Congado não morreram e que a celebração está de volta esse ano.
No encontro dos Congados, que ocorreu no domingo, dia 31 de julho de 2022, a presença de muitas crianças, adolescentes e mulheres grávidas foi chamativa. “Vivenciar as crianças, a emoção das crianças, emoção carregando as bandeirinhas, tocando os instrumentos, dos pequenininhos correndo. Que eu falo, é tão lindo de ver as crianças. As crianças motivam a gente a continuar”, comentou Iara Aparecida sobre o evento.
A festividade contou com a participação de 13 grupos e diferentes gerações de famílias congadeiras participando dos desfiles, tocando e dançando suas músicas, como o caso de Claiton, conhecido como Mestre Chocolate da Capoeira, e seu filho Emanuel, de 4 anos, que acompanhou o pai tocando tambor, representando o terno do bairro Saraiva.
“A nossa história está dentro do Congado e vamos trazendo de geração para geração: pai, filho, sobrinho, os namorados dos filhos e das filhas vão sempre chegando e somando à família, isso a família vai crescendo e não deixa a história do congado acabar”, contou o pai.
Cleiton também contou sobre a importância de, desde os primeiros passos, ir fazendo com que seus filhos gostem da cultura, da tradição e da história do Congado. “A gente conta histórias de formas lúdicas para ele, demonstrativas, por brincadeiras, que ele possa estar gostando da Congada, dessa forma ele vai se apaixonando cada vez mais”, disse ele sobre sua relação com o filho.
“Nos quartéis dos ternos temos caixas, as oficinas de ritmos, de cantos, contação de história, tudo isso já vem fazendo parte da formação dele. E ainda por cima eu sou capoeirista. Então as crianças vendo os mais velhos, vão repetindo as suas ações dentro desses espaços, ouvindo as nossas histórias é que elas vão constituindo o sentido da participação e por isso que as crianças e os jovens participam muito fortemente nos congados aqui de Uberlândia”, relatou.
A quantidade de jovens e crianças dentro dos ternos de Congado é de 60%, atualmente, de acordo com Denilson, diretor da Irmandade do Rosário, sendo os ternos formados por pessoas, majoritariamente, abaixo de 40 anos, além de contar com muitos meninos e meninas, desde 2 a 7 anos, que buscam seguir a trajetória dos pais.
Também em entrevista com adolescentes presentes no encontro, Cecília Vitória Ribeiro Rodrigues, de 13 anos, falou sobre sua participação no Congado: “Desde da barriga da minha mãe, eu já dançava, a gente dançava junto. Teve um ano que meu pai falou que eu ia ficar sem dançar, porque estava doente, mas entrei e dancei do mesmo jeito. É muito importante na minha vida.” E Letícia Mariana, de 14 anos, afirmou que “o Congado ensinou sobre respeitar os antigos, os santos e as diferenças das pessoas''.

Abraço entre senhora e jovem no encontro dos congados | Fotos de Vitória Marcelino

Cleiton e seu filho Emanuel | Fotos de Vitória Marcelino
A partir de entrevista com o professor Gerson de Sousa, da Universidade Federal de Uberlândia, que foi essencial para compreensão do movimento, assim como o contato com os congadeiros, ficou claro como o Congado representa uma memória constante nas vidas das pessoas e da cidade, não podendo ser compreendido apenas como algo focalizado, ou a festa não sendo apenas folclore, mas fazem parte da vida das pessoas. A tradição do Congado é dinâmica, é de resistência e luta, ela se transforma e se atualiza de geração para geração, conquistando novos espaços e devotos a cada ano, sendo fortemente representada por seus membros e na história de Uberlândia.

Emanuel tocando tambor | Foto de Vitória Marcelino
Lista de Ternos de Congado de Uberlândia
Congo Prata - Bairro Martins
Congo Rosário Santo - Bairro Aparecida
Congo Camisa Verde - Bairro Aparecida
Congo Santa Efigênia - Bairro Brasil
Congo Amarelo Ouro - Bairro Santa Mônica
Congo Verde e Branco - Bairro Pampulha
Congo São Domingos - Bairro Jardim Brasília
Congo Cruzeiro do Sul - Bairro Dom Almir
Congo de Sainha - Bairro Saraiva
Nossa Senhora do Rosário Catupé - Bairro Martins
Catupé Dona Zumira - Bairro Dona Zumira
Catupé Azul e Rosa - Bairro Santa Mônica
Marinheiro Nossa Senhora do Rosário - Bairro Alto Santa Mônica
Catupé do Mansour - Bairro Mansour
Marinheiro de São Benedito - Bairro Tibery
Marujos Azul de Maio - Bairro Roosevelt
Moçambique Raízes - Bairro Planalto
Moçambique Angola - Segismundo Pereira
Moçambique Guardiões São Benedito - Bairro Santa Mônica
Moçambique Estrela Guia - Bairro São Jorge
Moçambique Pena Branca - Bairro Patrimônio/Canaã
Moçambique Princesa Isabel - Bairro Campo Alegre
Moçambique de Belém - Bairro Santa Mônica
Moçambique do Oriente - Bairro Roosevelt
Moçambique Quilombo dos Palmares - Bairro São Jorge
Fonte: Jeremias Brasileiro
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