“Ms. Marvel” e a abertura de caminhos para o combate à islamofobia no entretenimento
- Giovana Sallum Seno
- 1 de ago. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 3 de ago. de 2022
Produção original do serviço de streaming Disney+ inova ao adaptar HQ de heroína paquistanesa a partir de uma representação respeitosa e não estereotipada desta comunidade
A minissérie “Ms. Marvel” – produzida pelo serviço de streaming Disney+ como parte integrante da franquia de heróis conhecida como “Universo Cinematográfico da Marvel” – teve seus seis episódios lançados nesta plataforma digital entre os dias 8 de junho e 13 de julho de 2022. Seu enredo adapta as histórias em quadrinhos da personagem Kamala Khan, uma jovem paquistanesa-americana muçulmana de 16 anos que é fascinada pelos super-heróis que salvam seu país das ameaças mais perigosas. No entanto, tudo muda quando a adolescente desbloqueia seus próprios superpoderes depois de portar uma relíquia de família, o que insere Kamala em uma intriga que ela precisará conciliar com seus compromissos relacionados à família, escola, amigos, romances e os deveres dentro de sua religião.
Todavia, ainda que tal produção audiovisual realize uma representação respeitosa da cultura e costumes encontrados dentro das comunidades islâmicas que se estabeleceram no Ocidente ao longo dos últimos anos, nota-se que a reprodução de estereótipos negativos atrelados aos membros desta corrente religiosa ainda persiste no cenário atual, especialmente quando discutida dentro do entretenimento – em especial àquele que é produzido dentro dos Estados Unidos da América. Partindo desde questões geopolíticas até outras relacionadas à falta de preocupação em representar tais culturas prestando o devido respeito a suas origens, esta é uma problemática que precisa ser devidamente contornada e, em meio a ela, a bem-sucedida recepção de “Ms. Marvel” entre os fãs da cultura pop representa a abertura de um importante caminho rumo ao combate à islamofobia dentro do show business.
O que é islamofobia?
De acordo com a definição fornecida pelo dicionário Michaelis, o termo “islamofobia” é utilizado para se referir a quaisquer atos que exprimam rejeição ou ódio ao islamismo e aos islâmicos. Em um de seus artigos publicados no Jornal da USP, o qual foi intitulado “Pesquisa sobre islamofobia no Brasil”, a antropóloga Francirosy Campos Barbosa cita que, apesar de o País ser um dos locais de maior diversidade religiosa no mundo, a intolerância permanece como problema de essencial resolução: “Nos últimos anos, a crescente onda islamofóbica e de preconceito em relação às pessoas que professam a religião islâmica tem sido praticada, em sua maioria, em relação às mulheres que usam hijab (lenço), tensionando esta convivência. As agressões sofridas podem acontecer em redes sociais, família, escola, etc. [...]”, explica a professora associada no Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP/USP).
Além disso, Francirosy aponta que, de acordo com pesquisas realizadas por ela ao longo dos 23 anos que anteciparam a publicação do artigo em questão, a maioria dos relatos de situações classificadas como islamofóbicas que foram coletados durante a pesquisa está relacionada com o gênero feminino. Contudo, também é preciso levar em consideração os aspectos que insistem em conectar as comunidades islâmicas a fatos como atentados terroristas e as frequentes migrações forçadas de muçulmanos em decorrência de guerras civis ou perseguições em massa a determinados grupos étnicos: “Pergunto se seriam as mulheres muçulmanas o principal alvo de discriminações, principalmente se estas fazem uso do lenço islâmico (hijab ou qualquer outra vestimenta que as identifique como muçulmanas), ou então se configuram outros aspectos dessa rejeição ao Islã e aos muçulmanos, como uso da barba pelo homem, sobrenome de origem árabe, entre outros – tais termos invariavelmente associados a estereótipos de terroristas, radicais e fundamentalistas”, comenta a antropóloga no desenvolvimento de seu artigo.
Além das informações fornecidas acima, sabe-se que a islamofobia possui uma relação direta com os diversos conflitos geopolíticos que acontecem nos países onde esta é a religião oficial, especialmente no Oriente Médio: por exemplo, há os inúmeros conflitos envolvendo a presença do grupo terrorista do Talibã no Afeganistão, a rivalidade existente entre países como o Irã e o Iraque e, até mesmo, o longínquo ataque terrorista ao World Trade Center no ano de 2001. Tudo isso, quando associado à intolerância religiosa que já prepondera ao redor do mundo, colabora para que a cultura islâmica seja erroneamente representada nas produções culturais oriundas do Brasil e do mundo, o que afeta diretamente o direito à liberdade de expressão e crença que é previsto para todos os indivíduos.

Créditos: Infoescola.com <https://www.infoescola.com/wp-content/uploads/2020/10/islamofobia_1340569901.jpg>
A cultura islâmica no entretenimento
Um dos casos mais recentes envolvendo acusações de islamofobia em produções audiovisuais que visam ao entretenimento diz respeito àquele relacionado ao filme “Pantera Negra”, em cuja cena de abertura foi detectada uma suposta alusão ao grupo terrorista Boko Haram, originário da Nigéria. De acordo com o jornalista Faisal Kutty, “a representação dos muçulmanos (no filme Pantera Negra) não passa de um ‘estímulo à islamofobia’ que apenas contribui e reforça as visões pobres e estereotipadas de Hollywood sobre o islamismo e os muçulmanos”. Esta afirmação é reforçada pela fala do líder islâmico Sami Aziz de que “Pantera Negra perpetua a tendência de centenas de filmes em descrever os muçulmanos como predadores sexuais sanguinários”.
Em entrevista concedida para a realização desta reportagem, a estudante do curso de Cinema da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Sofia Liz Paskakulis comentou que “os principais estereótipos e preconceitos relacionados à cultura islâmica que os filmes e séries costumam reproduzir estão relacionados ao terrorismo. Eles costumam generalizar bastante a figura do muçulmano, o que contribui para o estigma que é frequentemente associado a esta comunidade”. Para ela, esta visão da cultura islâmica ainda é disseminada nestas produções, especialmente aquelas que são produzidas nos Estados Unidos da América, pois “esta nação já possui um histórico extenso de desavenças geopolíticas com os países de religião islâmica, principalmente quando se diz respeito à ‘Guerra ao Terror’ e ao incidente relacionado ao ataque às Torres Gêmeas no ano de 2001. E como o cinema funciona como uma representação das sociedades que o produzem, já que a arte é uma forma de expressão, é inevitável que estes preconceitos tão enraizados sejam reproduzidos dentro desta manifestação artística”.
Além disso, Sofia opina que os principais prejuízos que tal persistência da islamofobia traz para o entendimento pleno desta cultura por parte do grande público consistem na “perpetuação deste preconceito que tendemos a replicar depois de assistir a filmes que os trazem de maneira mais ferrenha, o que de forma alguma é uma coisa boa, pois este grupo permanece sendo discriminado em razão de uma visão unilateral de sua cultura que é replicada para o mundo todo através dos mais diversos meios de comunicação”.
“Ms. Marvel” e as expectativas de mudanças neste cenário
A minissérie “Ms. Marvel”, portanto, representa o início de uma mudança relacionada à representação da cultura islâmica no entretenimento. Ainda que os ataques e comentários preconceituosos vindos de haters persistam, a atriz paquistanesa-canadense Iman Vellani, que interpreta Kamala Khan na produção, afirma que é “a favor de críticas construtivas desde que as pessoas tenham preocupações legítimas ou algo real, aí eu me importo. Mas todo o ódio que eu vi, não tem base, não tem mérito, é puramente apenas para odiar. E está tudo bem, você não vai impressionar todo mundo. Nós atingimos nosso alvo e atingimos todo um novo público que não sabia que iria se apaixonar por essa personagem, pessoas que nunca se viram representadas de forma positiva antes”.
A respeito de tal discussão, Sofia Paskakulis constata que “o recente lançamento da série ‘Ms. Marvel’ representa um elemento fundamental para que os movimentos contra a islamofobia ganhem cada vez mais força, pois a representação respeitosa e condizente com a realidade da cultura islâmica a que esta produção se propôs ajudará a abrir a mente das pessoas e quebrar os preconceitos que muitos cultivam em relação a ela”, assim como acredita que, com isso, “as produções tenderão a se afastar cada vez mais da reprodução de estereótipos e preconceitos não somente contra as comunidades islâmicas, mas também outras minorias sociais, tais como as comunidades LGBTQIA+ e as vozes que contam histórias negras”; o que demonstra o surgimento de um cenário positivo para o futuro desta cultura riquíssima dentro do mercado audiovisual.

Créditos: Omelete.com <https://www.omelete.com.br/marvel-cinema/ms-marvel-poster-kamala>
Para conhecer um pouco mais sobre a produção audiovisual mencionada na reportagem, confira abaixo uma prévia de seu conteúdo!
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